Note: English version below
Há 5 anos, quando
estava na Polónia tive a oportunidade de visitar não só o campo de concentração
de Auschwitz-Birkenau, como também o campo (ou o que resta dele) de
exterminação de Treblinka.
Em
Auschwitz-Birkenau vimos cenas horripilantes como as fotografias dos milhares
de pessoas, incluindo idosos e crianças, que ali chegaram, os bens que lhes
eram retirados, incluindo dentes de ouro, sapatos, cabelo… vimos de perto o
sitio onde dormiam, praticamente despidos, descalços... Era verão, mas eu
estava na Polónia há 7 meses, e o frio que enfrentara (num inverno apesar de
tudo ameno), numa casa aquecida, com roupa de época, fazia-me questionar como é
que alguém sequer conseguiu sobreviver naquelas condições atrozes.
Falei
com pessoas que visitaram a Polónia, mas que foram incapazes de visitar os
campos de concentração, eu percebo, mas forcei-me a fazê-lo porque há eventos
históricos que por mais horríveis que sejam não podemos esquecer. Porque há
momentos que por mais desconfortáveis que sejam temos de encarar para não
esquecermos da importância dos valores, de lutar pelos direitos humanos, mesmo
que não sejam os nossos que estão a ser postos em causa.
O
campo de Auschwitz-Birkenau está em grande parte intacto e permite aos
visitantes ter uma imagem bastante clara do que ali se passou, no entanto,
talvez pela quantidade de visitantes presentes, por estar num grupo maior ou
por já ter visto tantas imagens do campo e relatos do mesmo, não foi o local
que mais me impressionou.
Curiosamente,
foi visita ao campo de exterminação de Treblinka, que mais me afectou. Ao
contrário do famoso Auschwitz, em Treblinka encontrámos pouco mais do que um
enorme relvado, com grandes árvores e o memorial lá construído. As provas das
atrocidades que lá aconteceram, na sua grande maioria apagadas por quem as
cometeu… e ainda assim o peso de tudo o que lá aconteceu acompanhou-me a cada
passo.
Estava
um dia solarengo, o vento agitava levemente as folhas das árvores, éramos os
únicos visitantes e não se ouvia nada à nossa volta… Lembro-me de pensar “como
é que um lugar tão bonito, tão tranquilo, pode ter acolhido tanto mal?”…
Em
Treblinka não havia distrações. Não havia turistas, nem guias, nem folhetos,
nem cartazes com estatísticas e explicações… Em Treblinka não havia nada que
nos ajudasse a distanciar do que lá aconteceu… O silêncio de Treblinka era
ensurdecedor.
Durante
a minha estadia na Polónia fiz visitei Praga, Berlin, Viena… cidades todas elas
com uma história manchada pelo período Nazi. E em todas elas ouvimos relatos
impressionantes do que foi (sobre)viver durante esses anos, mas nada conseguiu
transmitir o que Treblinka me transmitiu.
Acredito
fortemente que devemos enfrentar estes momentos, aprender, ler, falar sobre
eles… É importante percebermos a fragilidade da nossa sociedade, não por uma
questão de alarmismo, mas para podermos combater o ódio que leva a que este
tipo de acontecimentos se repita em maior ou menor escala ao longo da história
da humanidade.
75
anos não é assim um passado tão longínquo… A minha avó tinha 12 anos quando a
II Guerra terminou… a minha mãe nasceu 14 anos depois… não foi assim há tanto
tempo, e apesar do que muitas vezes pensamos, a nossa sociedade não se alterou
de uma forma tão radical que estejamos seguros de que isso não aconteça outra
vez. Aliás, sabemos bem que em vários países do mundo muitas pessoas são ainda
hoje vítimas de atrocidades horríveis. O holocausto não foi o único genocídio
da história. E a discriminação, essa está longe de ser erradicada.
Muito
se tem falado dos crimes de ódio e raciais nos últimos tempos. E muitas são as
pessoas que acreditam que hoje em dia não há racismo em Portugal.
As
pessoas querem acreditar que Portugal é um país que acolhe todos de forma
calorosa, as pessoas fingem acreditar que não há diferenças na forma como as
pessoas são tratadas. Não me atrevo sequer a fingir que sei o que é passar por
isso, porque não o sinto na pele, e porque por mais que tente estar atenta
tenho a plena noção de que há situações que não me apercebo, mas eu vi como
“pessoas de bem” reagiram quando um grupo de jovens órfãos refugiados chegou
até nós, eu vejo como “pessoas de bem” não são racistas, mas não querem miúdos
ciganos a brincar à sua porta, eu vejo como “pessoas de bem” reagem de
forma diferente à minha família e aos meus amigos pretos, eu oiço os
comentários estereotipados que as “pessoas de bem” fazem sobre os meus amigos
LGBTQ… e se eu o sinto no dia-a-dia, em vários momentos ao longo do dia, mesmo
não me afectando directamente, imaginem o que é ter de enfrentar isso uma vida
inteira.
Podemos
continuar a fechar os olhos, a dizer que não somos homofóbicos porque “até
tenho um amigo gay…”, que não somos racistas “só não quero que a minha filha
namore com um preto…”, que não temos nada contra os ciganos “por acaso conheço
um e até é honesto…”, mas tudo isso é uma ilusão. E são essas ilusões que nos
levam a acreditar que o que aconteceu há 75 anos não poderia voltar a acontecer
agora, pelo menos não na nossa Europa “civilizada”, mas se pensarmos bem
sabemos que é uma falsa sensação de segurança.
Uma
das grandes lutas da minha vida tem sido tentar perceber qual é o meu papel no
mundo, porque não assumo a minha existência com leviandade. Tive o privilégio
de nascer branca, num país democrático, em paz e numa família de classe média.
Condições que deveriam ser transversais a todos nós, mas que infelizmente não o
são. Ao nascer, sem razão nenhuma, sem ter feito nada por isso, logo à partida
tive um conjunto de benefícios que outro bebé que nasceu exactamente no mesmo
dia nunca terá… Não tive influência nessa decisão, não me devo sentir culpada
com isso, mas acredito que devo tentar ao menos fazer algo de positivo com a
oportunidade que tive.
Não é fácil, tenho muita dificuldade em debater temas
como o racismo e a discriminação, simplesmente pelo facto de para mim ser tão
óbvio que não faz sentido que me é difícil manter uma conversa com alguém que
pense o contrário. É frustrante não ter o tipo de personalidade e de coragem
que me permitam fazer/dizer mais, mas tento fazê-lo tanto quanto consigo,
porque o ódio não se combate com ódio, e só com educação podemos mudar estas
mentalidades.
Para
além de todos os privilégios com que nasci, talvez o maior de todos seja o
facto de, ao longo da minha vida, ter contactado com várias realidades, das
pessoas que me são mais próximas e queridas não serem iguais a mim, de me permitirem
ver o mundo também pelo seu olhar, por me ajudarem a estar atenta e por me
fazerem acreditar sem o menor pingo de dúvida que o valor de uma pessoa não
está na cor da sua pele, etnia, orientação sexual, etc.
O
Mundo não é justo, e talvez nunca o será, mas podemos fazer melhor que isto,
podemos ser melhor que isto.
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Seventy Five
Five years ago, when I was
living in Poland, I had the opportunity to visit, not only Auschwitz-Birkenau
concentration camp, but also Treblinka extermination camp (or at least what’s
left of it).
In Auschwitz-Birkenau we saw
heinous scenes such as pictures of the thousands of people, including children
and elderly who were brough there to die, the belongings that were stolen from
them including teeth, shoes, hair… we saw up close the places where they slept,
barely dressed, barefoot… It was summer, but I had been in Poland for 7 months,
and the cold that I had faced (in a not so cold winter), in a heated house, with
winter clothes, made me wonder how anyone had even survived in those
conditions.
I spoke with people who have
been to Poland and were unable to visit the concentration camps, I understand
that. I forced myself to do it, because there are historic events that no
matter how horrible we must face so we never forget the importance of human
values, and to fight for human rights, even when we’re not the ones being
threatened.
Auschwitz-Birkenau
concentration camp is mostly intact and allows its visitors to have a clear
image of what happened there. However, maybe due to the number of visitors,
because I was in a bigger group or because I’d seen images of the camp before,
it wasn’t the place that most affected me.
Curiously it was the visit to
Treblinka extermination camp that most impressed me. Unlike Auschwitz, in
Treblinka we found mostly grass, tall tress and a memorial. The evidence of the
atrocities committed there, mostly erased by their authors… and yet the weight
of everything that that place witnessed followed me every step I took.
It was a sunny day, the wind
blew lightly, we were the only visitors and we couldn’t hear anything around
us… I remember thinking “how can such a beautiful, peaceful place have been the
home of something so evil?”…
In Treblinka there were no
distractions. There were no tourists, no guides, no flyers with statistics and
explanations… There was nothing that helped us gain some distance from the
events that happened there… The silence of Treblinka spoke volumes.
While I was in Poland, I
visited Prague, Berlin, Vienna… all those cities’ history stained by the Nazis.
In all of them I heard impressive stories about how it was to survive during
that period, but nothing touched me like Treblinka.
I strongly believe that we must
face these moments, we must learn and read and talk about them… It’s important
to understand the fragility of our society, so we can fight the hate that drive
us to these kind of events over and over in human history.
75 years is not that long… My
grandma was 12 when the Second World War ended… My mom was born 14 years later…
it’s not that long ago, and despite what we think, our society hasn’t change so
much that we are safe from that happening again. In fact, we know that around
the world a lot of people are still being victims of horrible atrocities. The
holocaust was not the only genocide of history. And discrimination… that’s far
from being eradicated.
We’ve been talking a lot about
hate and racial crimes lately. A lot of people believe that racism is not present
in Portugal anymore.
People want to believe that
Portugal is a country that welcomes everyone warmly, people pretend to believe
that everyone is treated the same way. I don’t even dare to pretend to know
what it feels to live with that, because I don’t feel it in my skin, and
because no matter how aware I try to be, I know there’s a lot I don’t see… But
I saw how “good people” reacted when a group of orphan refugees arrived to my
work place, I see how “good people” are not racists but don’t want gypsy kids
playing on their street, I see how “good people” act towards my black
friends/family, I hear the comments “good people” make about my LGBTQ friends…
and if I feel it every day, even if it’s not directed to me, imagine how it
must be to live with this every day of your life.
We can keep closing our eyes,
say we are not homophobic “we even have a gay friend…”, that we are not racists
“I just don’t want my daughter dating a black guy…”, that we don’t have
anything against gypsies “actually I know one that’s honest…”, but all of that
is an illusion. And those illusions are the ones that make us believe that what
happened 75 years ago could never happen again, at least not in our “civilized”
society. But if we really think about it, we know it’s a false sense of
security.
One of the biggest struggles of
my life has been to figure out what’s my role in the world, because I don’t
take my existence lightly. I had the privilege to be born white, in a
democratic and peaceful country, in a middle-class family. These conditions
should be transversal to all of us, but they’re not. I was born, and just like
that, for no reason, I had a set of benefits that another baby born in the
exact same day will never have… It’s not my fault, I shouldn’t feel guilty
about it, it was out of my control, but I believe I should at least do
something positive with the opportunity that I was given.
It’s not easy, I have
a really hard time debating things like racism and discrimination, because for
me it’s so obvious that none of it makes sense that it’s hard to keep a
conversation with anyone that thinks differently. It’s frustrating not having
the personality and the courage to say more and do more, but I try to do as
much as I can, because hate can’t be fought with hate. We need education to
change these mentalities.
Of all the privileges I was
born with, maybe the biggest of them all was the fact that, in my life, I
contacted with different realities, that some of my closest and dearest people
are different from me, they allow me to see the world through their perspective,
they help me be aware and made me believe, without an ounce of doubt, that a
person’s value is not in the color of their skin, their nationality, sexual
orientation, etc.
The world is not fair, maybe it
will never be, but we can do better than this, we must be better than
this.
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